Dia desses, voltando do trabalho, passei em frente à porta do apê davizinha. Uma folha imensa de papel, pendia de alto a baixo, na parede da porta. Acho que o marido estava voltando de uma longa viagem, pois na dita folha, a dita vizinha deixava registrada a ausência que sentira e o quanto amava essa pessoa, fruto de sua homenagem e com quem decidira um dia juntar os trapinhos,um dia. Diga-se de passagem que os dois vivem às turras, ele é bem mais velho, ela, uma garotinha mal saída da adolescência. Entre os vizinhos de andar, são frutos de conversa de elevador os bate-bocas que, de vez em quando, o casal proporciona, quebrando a paz sindical dos sábados à tarde.
Com isso ainda fresco retina, entrei no meu covil e, entre uma coisa e outra, comecei a desfiar um longo rosário de imagens: anúncios pessoais nos classificados, programas de entrevistas, onde as pessoas falam de tudo, de espinhela caída à cura da Aids, de aquecimento global a fantasias sexuais. As pessoas falam, falam, inclusive de si mesmas, de seus problemas mais íntimos, com a maior sem cerimônia, como se estivessem conversando com amigos íntimos. Na televisão brasileira, há vários programas especializados nesse tipo de "temática". Um deles, apresenta um quadro onde o participante é convidado a contar um grande segredo de sua vida, algo que fez, presenciou ou participou e que na época nao fez o que deveria ter feito para solucionar a questão. Via de regra,comparecem o convidado, autor da gafe ou seja lá o que for, e a pessoa a quem ele acha dever satisfações. Geralmente, essa pobre vítima é a mãe do indivíduo.
Pois bem - nesse programa, estavam uma mocinha de seus vinte e poucos anos e sua respectiva genitora, uma senhora um pouco acima do peso, com cara de matrona bonachona da Moóca. Pra meu espanto, enrtre soluços, lágrimas e muitos comerciais, a mocinha relatou que um belo dia, sumiu uma quantia considerável de reais da pobre mãezinha. Procura daqui, procura de lá, interroga um, pergunta pra outro, logo encontraram a culpada, ou melhor, delataram a culpa, que, como não podia deixar de ser, era a empregada da casa. E aqui, entra a surpresa, devidamente preparada pela apresentadora - a mesma mocinha, com cara de santinha, conta então, seu terrível segredo. Enxugando o pranto, assoando o nariz, ela narra que o dinheiro não fora roubado pela empregada, mas sim por ela mesma. E, mais, que a grana fora usada para pagar um aborto que ela fizera, para se livrar de um filho indesejado. Nota de rodapé - mocinha era e ainda é solteira. imaginem o tamanho do pepino. Bem, a pobre da mãe fica pasma, perplexa, sem ação. Balbucia alguma coisa, a filha desaba em pranto, desanda a pedir perdão. A mãe passa mal, tem que ser retirada de frente das cãmeras. E, tudo isso ao vivo e em cores, em rede nacional para quem quisesse ver e ouvir.Outra nota de rodapé - a facilidade, a naturalidade com que as pessoas contam essas coisas cabeludas, se descobrem os cantos escuros de suas vidas. E, pensar que eu suava e tremia só em pensar de contar ao padre os meus "maus pensamentos".
Uma das grandes sacadas de Fellini, no filme "La Dolce Vita" foi a sociedade do espetáculo, a sociedade da exposição. A cena mais representativa é aquela do famoso banho na fonte, protagonizada pela louríssima Anita Ekberg. Hoje, a vida é um filme. Um filme onde todos somos personagens, onde todos aparecem, uns mais, outros menos. E, claro,todos, sem exceção alguma, querem aparecer o máximo possível.E para isso, não hesitam um segundo em revelar seus segredos, mesmo que seja uma coisa, do arco da velha. Acredito que internet potencializou essa tendência - Orkut, Face Book, My Space etc., são locais de exposição pessoal o tempo todo. E tem agora, o caculinha dessa galeria - twitter, que pelo que pude entender, é um treco que permite você seguir, enquanto pode e quer, uma determinada pessoa, geralmente famosa. No meu tempo, seguir alguém era coisa de detetive.
Em contraste, nunca as pessoas se queixaram tanto de solidão, de ausência dos demais, de abandono. Nunca os relacionamentos duraram tão pouco, nunca o nível de tolerância andou tão baixo. Acho que, de tanto falar, de tanto se expor, não restou mais tempo para refletir sobre o que se vê ou ouve. Não há espaço para reflexão, para elaboração, para renovação. E,com isso, vagamos como zumbis, falando como loucos, esbarrando uns nos outros, numa verdadeira multidão solitária.