Já fazia algum tempinho que eu não ia ao cinema. Numa quarta-feira, mais ou menos quinze dias atrás, resolvi que iria ver "Os Trezentos". Por ser de formação católica e por gostar de História, principalmente quando se trata de assuntos ligados aos gregos e romanos, vi filmes como "Quo Vadis?", "Demetrius, o Gladiador", "O Manto Sagrado", "Sansão e Dalila", "Ben Hur"e como não poderia deixar de ser "Os Dez Mandamentos". Meu Deus - estar em frente a uma tela imensa, tomando quase toda a parede do cinema, vendo o mar se abrir, é uma experiência que não se esquece com facilidade. Naquela noite de hum mil novecentos e bolinha, eu quase não dormi direito, assombrado com o que vira. Eta, tempo bom! Como não vira "Tróia" e "Alexandre", como perdera vergonhosamente "As Cruzadas", decidi honrar meu passado, e corri para o cinema, pois além de estar um pouco atrasado para sessão, era dia de meia-entrada. Os assuntos do bolso, são urgentes, não é mesmo pessoas?
Gente - o filme no que se refere ao tratamento das imagens, é nota dez. Eu fiquei impressionado com aquela mistura de estória em quadrinhos e filmes comuns, de verdade, se é que vocês estão me entendendo. O resultado é muito, mas muito interessante. Fiquei imaginando ver filmes como ""E o vento levou", “O Último Imperador” com aquele tipo de tratamento. Ia ser um arraso, com toda a segurança. Porém - em relação ao conteúdo, à mensagem que passa - é um terror. Maniqueísta a mais não poder. Como todos já devem saber, o tema de "Os Trezentos" é sobre a resistência do exército de Leônidas, rei de Esparta, ao exército de Xerxes,.no desfiladeiro das Termópilas. No final da estória, Leônidas entregou a cambuquira, mas deu um trabalhão danado pros persas, que contaram com a providencial ajuda de um espartano traidor.
Pois bem - o filme principia fazendo uma espécie de apresentação do que seria a sociedade espartana daqueles dias. Uma sociedade eminentemente masculina, regida por atividades ligadas à guerra e à conquista. Em consequência, seus valores são coisas como força física, resistência à dor, lealdade, obediência, respeito à hierarquia, disciplina. Como é previsível, nesse tipo de organização social não há lugar para a sensibilidade, a incerteza, a dúvida. O papel das mulheres é o de ser simples coadjuvantes de seus maridos, mulheres verdadeiras, para parirem homens verdadeiros, no dizer da rainha de Esparta, mulher de Leônidas. Homens verdadeiros e saudáveis, pois aqueles que tem a desgraça de nascerem com alguma imperfeição física, são descartados imediatamente. Homens verdadeiros, saudáveis, que não perdem tempo com aquelas frescuras dos filósofos pederastas de Atenas, como é dito numa certa altura do filme. Com esse pano de fundo, no filme tudo o que se refere à Esparta é tratado de forma a ressaltar cores claras e brilhantes, a austeridade dos ambientes e da vida diária, a devoção à cidade, a retidão e pureza de caráter.
E do outro lado, como eram coisas? O outro lado, no caso, refere-se aos inimigos de Esparta e por extensão da Grécia. Como é sabido, Xerxes, rei da Pérsia, estava muito a fim de dar uma sova daquelas nos gregos e colocar Esparta, Atenas e a Grécia todinha sob seus domínios. Seguindo a lógica maniqueísta de dividir as coisas de modo estanque, Xerxes, os persas e seus aliados encarnam a figura do Mal. Desse modo, se em Esparta tudo era muito claro, visível e reto, o exército de Xerxes surge como a personificação do obscuro, daquilo que não se vê porque não se deve , da deformação e da iniquidade. Os componentes do exército persas são figuras assustadoras, monstruosas, selvagens e sanguinárias. Apesar de tudo isso, há um diferencial entre um e outro exército – enquanto que do lado dos espartanos impera uma monotonia no tocante aos tipos humanos, do lado dos persas há uma grande multiplicidade: negros, brancos, feios, mais ou menos, cabeludos, sem cabelos, etc. O próprio Xerxes é um verdadeiro carro alegórico, se comparado à figura de Leônidas: muito alto, voz trovejante, todo enfeitado de colares, pulseiras, brincos, piercings, cabeça raspada, sombrancelhas feitas, unhas compridas e esmaltadas. Coitado do Rodrigo Santoro – foi transformado numa bichona. Contudo, é assim que o Tio Sam vê o resto do mundo – como uma ameaça, um perigo que pode a qualquer momento ataca-los. Até a queda do Muro de Berlim esse inimigo tinha um nome – União Soviética e seus aliados. Entretanto, depois da queda do Muro e, principalmente, depois do 11 de Setembro, esse inimigo perdeu a identidade e a visibilidade. Pode ser qualquer um, atacar a qualquer hora e de qualquer lugar. Há mais de quarenta anos, esse inimigo eram os vietcongs. Estavam no sudeste da Ásia. Tempos depois, o inimigo passou a se chamar Kadafi, Saddam, Arafat. Estavam na Líbia, Iraque e Palestina. Hoje é Bin Laden e nunca se sabe onde ele está. Ora surge numa montanha do Afeganistão, ora numa aldeia do Paquistão. Quem viu “Babel” sabe bem o tipo de paranóia que isso desperta em povos e seus governantes.
Bem, resumindo – o filme vale mesmo pelo visual inovador, pelo menos para mim. Entretanto, o seu conteúdo é um retrato autêntico do imaginário norte-americano sobre si mesmo, enquanto povo e enquanto nação, nesses tempos bicudos de George Bush. O único senão – nos créditos não aparece o nome dele.